sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Um país de economias e de culturas estranhas



Colaborador Roberto Rocha

Diz o jargão popular: “Deus é brasileiro”!. Mas nós sabemos que não é bem assim. Quando falamos das riquezas do Brasil, o que pouca gente sabe, é que uma boa parte delas é estrangeira. Ou melhor, exótica. Devido à extrema ignorância biológica sobre a flora e a fauna do Brasil, a partir do redescobrimento, os portugueses e outros povos, introduziram aqui indivíduos de diversas espécies alienígenas que perduram até hoje. Esse “descaso natural” contribuiu para a destruição de diversas espécies endêmicas que não foram nem conhecidas. A falta de cuidados maiores com um solo vivo, causou um esgotamento progressivo associado a fenômenos erosivos os mais diversos, que podem ser observados ainda nos dias atuais (FIG. 1)

FIG. 1. Forte processo erosivo (voçoroca) que tende a se aprofundar e a se alargar cada vez mais, carreando sedimentos e deslocando matacões (pedras) que rolam para as estradas, impedindo a circulação dos veículos ou ameaçando a segurança pública.

Os índios não construíam em terrenos inclinados, nas encostas dos morros, até porque as matas eram preservadas nesses locais. Nosso modelo econômico foi forjado a partir de práticas completamente estranhas aos nossos ecossistemas. Por séculos, revolvemos a terra de forma incorreta e queimamos o chão úmido da mata pluvial que não possui mecanismos de sobrevivência sofisticados para resistir ao fogo como ocorre em outras áreas onde os incêndios naturais são até necessários para a regeneração da floresta. Copiamos costumes de outras regiões por pura imitação e sem base de conhecimentos mais sérios. Só muito recentemente é que estamos começando a desconfiar como os nossos sistemas florestais funcionam, especialmente por causa do aquecimento global. Talvez tardiamente.

A maioria dos brasileiros urbanos não sabe identificar a flora e a fauna do Brasil. Entre os animais reconhece apenas algumas espécies domésticas introduzidas ou as de grande porte, em especial os que vivem em zoológicos. Muitos dos eventos folclóricos, por exemplo, o “Bumba meu boi”, não foi inspirado na nossa fauna nativa. Representa uma incrível mistura de realidades de um Brasil colonizado, entre escravos, índios e fazendeiros com seus pesados animais de cascos. Os ruminantes de grande porte que conhecemos como o zebu (Bos primigenius indicus) e a vaca holandesa (Bos primigenius taurus) foram importados com base em interesses econômicos. O búfalo (Bubalus bubalis) é outro estrangeiro em terras brasileiras. O mesmo ocorreu com o cavalo (Equus ferus caballus), o burro (Equus asinus asinus). O perissodáctilo brasileiro de dedos ímpares, e mais próximo do cavalo é um tapirídeo - a anta (Tapirus terrestris). Contamos ainda como exóticos, a cabra (Capra aegagrus hircus), a ovelha (Ovis orientalis aries), o coelho (Oryctolagus cuniculus), a galinha (Gallus gallus), o pombo (Columba lívia), a abelha européia (Apis mellifera), o bicho-da-seda (Bombix mori) e tantos outros. Nenhum deles é autóctone. Temos canídeos, mas são todos selvagens: cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), o cachorro-do-mato-vinagre (Speothos venaticus), a raposinha-do-campo (Pseudalopex vetulus): nenhum é descendente do lobo (Canis lupus) e suas diferentes raças geográficas que se espalharam pelo mundo. A população de cães e gatos domésticos no Brasil é astronômica. No entanto, temos diversos gatos selvagens ameaçados de extinção: jaguarundi (Felis yagouarundi), gato-do-mato (Leopardus tigrinus), gato-dos-pampas (Leopardus colocolo), maracajá (Leopardus wiedii) e a jaguatirica (Leopardus pardalis). Eles apenas lembram o gato importado (Felis silvestris catus). Temos porcos-do-mato: cateto ou caititu (Tayassu tajacu) e a queixada (Tayassu pecari), mas não são irmãos do suíno exótico (Sus scrofa domestica) que o Brasil manda de volta para os países europeus. Quem não conhece a rã touro gigante “americana” (Rana catesbeiana) em meio a uma infinidade de pequenas rãs nativas que temos no país. E a avestruz africana (Struthio camelus)? Todas estrangeiras.

Fomos ocupados por “estranhos” de todos os tipos e raças. Até o ciclídeo de água doce conhecido popularmente como tilápia é africano, enquanto temos aqui a nossa acará-testuda (Geophagus brasiliensis) e outros mais, aguardando um melhoramento genético adiado. E a soja (Glycine max) e o arroz (Oryza sativa), dos chineses? E a manga (Mangifera indica), a laranja (Citrus sinensis), a banana (Musa sapientum) e a cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) do sudeste asiático? E o milho (Zea mays), o tomate (Lycopersicon esculentum) e o feijão (Phaseolos vulgaris) da América Central? Não bastassem as espécies comestíveis, o nosso paisagismo urbano é também rico em “importados”. É um verdadeiro absurdo ecológico ver milhares e milhares de amendoeiras da Índia (Terminalia catappa) e centenas de exóticas ocupando espaços junto ao litoral (riquíssimo em espécies nativas maravilhosas que não são usadas). Por que não estudamos e por que não usamos as nossas espécies de restinga? Pouca gente sabe que existe a princesinha-de-copacabana (Eugenia copacabanensis), uma espécie endêmica da cidade do Rio de Janeiro. Por que elas não são conhecidas pelos próprios moradores de Copacabana? Ser ignorante sobre os recursos que não interessavam economicamente é uma situação antiga, mas podemos corrigi-la. As cidades do litoral e do interior poderão – ao mesmo tempo - ajudar na salvaguarda de espécies raras, e divulgar para a população o que é da nossa terra. Nem o coqueiro da Bahia é nosso, embora o seu nome sugira isso. Temos palmeiras nativas lindíssimas, mas foram quase que esquecidas pelos nossos paisagistas.

Hortos municipais e estaduais deveriam ser reorientados no sentido de estudar e investir nas espécies endêmicas regionais, em nossas praças, jardins e qualquer outro espaço de domínio público. Retirar as exóticas que estão em pontos inadequados (ameaçando as redes de distribuição de energia elétrica) e substituí-las por espécies nativas que possam se mostrar confiáveis no sentido de não crescerem demasiadamente, não arrebentar as calçadas e não obstruir as redes de esgotos com suas raízes. Certamente que alguns indivíduos exóticos “tombados” devem ser mantidos, por motivos históricos. O que ocorre é que o critério para o plantio das mudas pode ser a “facilidade” e o “custo” para obtê-las e não exatamente a adequação da espécie, para cada caso. Ainda temos alguns anos até as Olimpíadas de 2016. Não acho que seja difícil fazer algumas mudanças relevantes nesse período.

Outro detalhe é que vivemos um momento planetário de aquecimento, em que os ventos estão se tornando mais fortes e devemos nos preparar para eventos climáticos que vão se repetir cada vez mais e com maior freqüência. Inundações rápidas com grandes volumes precisam ter caminhos de escoamento rápido.Se as bocas dos bueiros estiverem obliteradas a situação poderá se complicar.

Outra prática interessante é plantar árvores nativas com comprovada aplicação em artesanato (falta pesquisar muita coisa ainda). Depois da poda regular feita pelas Prefeituras, bem que poderia ser feito um estoque desse tipo de madeira para cada grupo comunitário de modo a ter matéria prima para um ano inteiro de artesanato (FIG.2). Se ocupamos o espaço urbano com “amendoeiras” - que serão podadas cedo ou tarde - podemos retirá-las e plantar espécies que são sabidamente usadas em artesanato, movelaria, construção de instrumentos musicais ou prestando serviços ecossistêmicos e contribuindo para alimentar e abrigar a fauna. Não duvido que já exista alguma pesquisa nesse sentido. Atualmente é possível transplantar ”árvores” já perfeitamente adultas.

Até 2016 poderíamos dar um exemplo ao mundo de como usar racionalmente os nossos recursos mesmo em cidades densamente urbanizada. Assim como na África (Angola) são entalhados os representantes de sua fauna mais nobre (FIG.2). As prefeituras teriam um grande papel social ocupando pessoas nessas atividades. Quem sabe até exportar tais produtos e estimular as casas de culturas, o empreendedorismo e o cooperativismo?

FIG.2. Palanca negra (Hippotragus niger) - o mais belo antílope de Angola: artesanato em madeira (14 cm de comprimento x 4,2 cm de largura x 14 cm de altura).

Não precisaríamos cortar a árvore inteira, mas apenas “coletar” galhos com diâmetros adequados para pequenas peças. Precisamos corrrigir esses erros seculares que enterraram nosso patrimônio indígena (nativo) ímpar, que somente nós possuímos. A correta maneira de “explorar” os recursos nacionais deveria partir de programas específicos, respeitando-se cada bioma e suas ecoregiões, a partir de sua faunas e floras mais características. Outra iniciativa importante é a formação de corredores florestais a partir de espécies indígenas, de modo a garantir a sobrevivência dos organismos que dependem delas.

Pelo fato de cada um de nós – em sua maioria – possuir alguma carga genética européia oriunda de nossos avós e bisavós, não estranhamos muito o fato de falar em bois e cavalos. O que chamamos de espécies alienígenas aqui são antigas acompanhantes boreais, de terras baixas, com neve abundante e rios congelados. De cascos e chifres domésticos, de leite farto antes nunca visto, de carnes abundantes que não têm gosto de macaco nem de jabuti neotropical em meio a milhares de frutas, óleos e madeiras, desconhecidos. Nós nos acostumamos a comer a carne lá de cima, quando nós ainda éramos “indígenas” habitantes do espaço paleártico na Eurásia, mas não no Brasil. Nossas “carnes” eram outras. Nossas frutas não eram conhecidas pelos “brancos”. Transferimos para cá culturas e tradições sedimentadas quando ainda éramos homens das cavernas do paleolítico: um comportamento étnico aceitável para o Hemisfério Norte, mas um lamentável equívoco ecológico praticado na linha do Equador, quente, úmida, biodiversa, onde viviam nações que realmente sabiam manejar e usufruir – sabiamente, por milhares de anos - os recursos abundantes que existiam até então, hoje ameaçados. Acordar é preciso, desse longo sonho, dessa viagem infernal em busca de um desenvolvimento e riqueza de cifras digitais, que aparecem e desaparecem nas telas, como uma mágica econômica, todas virtuais. Não toca a nossa pele e não possui nenhum canto melodioso. Não varia em cores e não retira a nuvem marrom do teto das cidades e dos pulmões dos nossos netos. Estamos entre estranhos. Por que não investimos no que é ecologicamente autêntico e milenarmente consagrado?

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